Uma actriz muito jovem observa uma grande actriz. Admira-a. No camarim, imita gestos, tempos. Estuda-a.
Ela é a Emília das Neves.
Ela é a Palmira Bastos.
A Amélia Rey-Colaço.
(A grande actriz vai mudando de nome conforme quem conta.)
É uma. grande. actriz.
A jovem actriz ganha coragem e diz-lhe que a admira, que é um privilégio estar ali.
A grande actriz: Trabalha aqui no teatro?
A pequena actriz, constrangida, explica que contracena com ela.
A grande actriz olha para ela. Diz: Ai sim? Hei-de reparar.
O teatro português parece-me sempre profundamente desinteressante. Hei-de reparar. é um projecto de pesquisa teatral sobre teatro, e que parte de vidas e obras de actrizes portuguesas do século XIX e XX para pensar no que é o teatro português – hoje e antes. Foi sempre tão mau como parece ter sido? A coisa mais teatral que encontro no teatro português são as histórias das actrizes.
Em ensaios, ouvimos muto frequentemente, como se fosse um defeito, isso é muito teatral, muito teatro, muito teatrão. Rimo-nos da intensidade, de tiques, de cadências aprendidas, de egomania, de canastrice. O teatro precisa de ser contemporâneo, ter bom gosto, ser minimal. Cool.
Talvez este projecto queira ser muito teatral. Canastrão. Procurar nos códigos e mitologias do teatro uma forma de questionar o teatro que fizemos até hoje, e o teatro que fazemos ainda agora. Hei-de reparar. é um divertimento. Uma visita às histórias e aos mitos, às técnicas, às falhas: à imagem da Grande Actriz que permanece e se apaga; às imagens que a história deixa desaparecer, e às imagens que a história vai escolhendo.