Qual a relação entre hierarquia e heroicidade?
O que é uma família?
Em A Pedra, a Mágoa coloca-se a entidade família como objeto de estudo, debruçando-se sobre construções hierárquicas que a compõem e interpelam, alicerçadas numa mentalidade tradicionalista em que a parentalidade assume um papel mitológico como espaço heróico intocável. O processo de escavação entre o público e o privado parte da analogia criada entre a ideia de família e as pedreiras existentes em território nacional ⎯ 2500 contabilizadas até ao presente, sendo que mais de metade se encontra inativa, assumidas como minas na paisagem a céu aberto. São espaços de escavação humana numa superfície ao encontro de um terreno desconhecido, abrindo feridas em áreas geográficas do território, desgastadas pelo abandono, numa intimidade paralela àquela que se esconde nas construções familiares, assumidas como espaços de aprisionamento e libertação ⎯ características que o corpo performativo tem vindo a apoderar-se nas práticas artísticas contemporâneas, dando atenção a um corpo repleto de perdas constantes.
Relacionando os conceitos reconstrução, mito e romantismo, o coreógrafo Daniel Matos revisita a obra musical que marca a história da dança do séc. XX: “Prélude à l'après-midi d'un Faune”, de Claude Debussy.
"Observei o meu país de cima. Lá, os meus pais multiplicavam-se entre cidades e vilas, construindo famílias que não eram minhas. Famílias grandes e famílias pequenas, famílias solteiras ou em grupo, com e sem casas. Mesas cheias e bolsos completamente vazios, famílias com bocas calmas e imagens que são apenas familiares no exterior. Olhando para baixo, vi também feridas abertas na terra, escavações sem fim, umas cuidadas e outras abandonadas, umas cheias de água e outras simplesmente ao ar livre, inspeccionadas por animais de ferro a que decidimos chamar gruas para que o trabalho pesado não fosse confundido com a exploração animal (o meu pai e a minha mãe sempre foram animais de trabalho). As famílias das pessoas e as famílias dos buracos tornaram-se demasiadas para manter a visão clara, perdi os meus pais e as suas novas famílias (que talvez sejam minhas ou então esses pais nunca me tenham pertencido). Percebo que talvez eu não esteja em lado nenhum, que tudo é um enorme buraco de pedra caída. Não há mais país, nem pais, nem família - tudo é tudo e tudo traz o princípio do nada: recomeçar uma escavação a partir de dentro". ⎯ Daniel Matos