O que é uma imagem representativa da raiva? Que movimento inspira a palavra raiva?
Eu vejo-a no azul e no cheiro intoxicante do lixo em chamas que observei à noite, lindo e cruel. Eu vejo-a nos remoinhos perpétuos das águas agitadas pelas torções da beira-mar que recua, ou nos rugidos tempestuosos do oceano. Eu vejo-a na matéria vermelha do copo que coloco na lareira antes que o gesto deslumbrante o congele. E lembro-me da doença da raiva (quando vivi na Etiópia), a urgência das pessoas ao viajar por uma vacina antes da hidrofobia e da morte. A emergência em matar todos os cães. O corpo reaparece perante o perigo hipnótico, perante tudo o que é irreversível.
Somos uma dança, e emergimos como poesia deste movimento implacável: uma cara desconhecida hibridizada pela crueldade ⎯ que nos pertence ⎯ faz-nos emergir. Porque os nossos corpos desapareceram; sob o sino (sanitário) deixamos de mudar, passamos por uma mutação lado a lado com a norma informada que refletimos no lago liso (o ecrã). As comédias estão adormecidas, as palavras consumidas consomem o semblante e a idolatria. A raiva está latente, mas procuramos que bandeira hastear que não seja de um partido (político) ou de uma fé de amianto. Se içarmos essa bandeira em fogo, em água, que cor teria?
La Rabbia é um argumento e filme escrito e realizado por Pier Paolo Pasolini em 1963. Rage reflete La Rabbia através de espaços que não são cenas típicas. A música híbrida é uma aliança de instrumentos acústicos do barroco, vozes e eletrónicas. Para o trabalho coreógrafo, quero avaliar o estado de corpos perante uma aparente emergência, fazê-los materiais de um momento elusivo e objetos/sujeitos de uma beleza aterrorizadora. Dois corpos que se levantam e que evocam "uma lentidão que se apressa" (cf. John Genet). Quero comprometer-me com esta noção de beleza enquanto imagem de raiva; isto, ativando também uma escrita artística hipnótica, preciosa, extremamente vertiginosa, que se abre ao tempo e ao espaço.