PT | EN

Destaques

Uma pedra sobre a morte

Inês Pinto de Faria

12 dez, 2023

Corpos e epitáfios. Vala, túmulo, ossário, jazigo, sepulcro, tumba. Cemitério, cova, caixão, campa, cadafalso. Garantir que o corpo não se decompõe antes da sua apresentação. Limbo e laboratório. Em Descansar, peça apresentada na segunda parte do ET/FEST, em Montemor-o-Novo, Raquel S. traz memórias, objetos e corpos dos seus passeios por cemitérios. 

A composição de cena é apresentada em contrastes, como a própria peça, num equilíbrio dramatúrgico do que é olhado. Une-se tudo num espaço: um cemitério pensado para os vivos. O cenário de Pedro Azevedo segura a dispersão de conteúdo. O lugar prolonga-se até ao subterrâneo. Entre percursos visíveis e túneis de serviço, desvenda-se uma montra mortuária. E, num sobe e desce narrativo, o vazio da cova e a urna são portais que ligam o terreno ao submundo.

Ao nascer da bruma, uma figura estática e clara pertence já ao lugar a que o público chega. Ouvem-se depois os passos de uma segunda figura a entrar, vestida a negro. Sente-se pelo seu corpo a desorientação, o drama e o lamento. Estes contrastes repetem-se ao longo da peça e talvez procurem simplificar a leitura. O diálogo é eliminado para um compreensível dinamismo em cena. Mesmo assim, as palavras são usadas em monólogos e projeções. Projeções essas que apresentam um in memoriam de nomes perdidos no tempo, assim como famílias de palavras e expressões entre as cenas, em imagens redundantes. O entretenimento em projeção, no lugar do silêncio para assimilação, como uma coletânea de ideias e assuntos, num pesado virar de página. 

Surge uma tanatóloga a despir um corpo estático. Assiste-se ao silêncio da normalidade, da ação profissional de tratamento, cuidado e preservação de um cadáver. Sem reação extrema, só uma gota de curiosidade. Movimentos detalhados e lentos que dão ao público espaço e tempo para os interpretarem e integrarem. Mas depois é dito: “Ser ou não ser.” O espectador é atingido com uma divagação que já pertence ao seu imaginário, sobrepondo-se à imagem de movimentos criados. O envolvimento com a história, contada pelo movimento, é interrompido, e a voz impede a liberdade de perceção. Os satélites narrativos criados por Raquel S. são tão complexos na sua transposição para cena, mas tão simplificados na voz das intérpretes. 

A imagem daqueles corpos em cena é sobrecarregada de frases perdidas no ar e de linhas de texto em tela, apenas como demonstração de apontamentos de investigação. Na vontade de tanto para apresentar transparece o medo de deixar de fora algo que poderia ser. Um FOMO teórico que demonstra um lugar de amor pela investigação completa e a vontade de partilha do que se descobriu.

O sino toca, o morto está vivo. Assiste-se à sua passagem do laboratório ao limbo, entre o despir do corpo e o vestir da alma penada. A ligação é possível. Em lance de luz e pausa transitamos para outro lugar. Movimentos requebrados e gestos como sinais. Um aceno. A expressão foi estudada de forma minuciosa. Júlia Valente e Leonor Cabral defendem a peça pelos seus corpos. Os movimentos que fazem demonstram uma compreensão detalhada das imagens. A sua beleza é superior ao discurso. Ao longo do espetáculo a neblina vai adensando até se converter em véus que cobrem os seres preteridos. Tornam-se fantasmas. 

Raquel S. demonstra uma força e um rigor na linguagem visual que não podem ser subestimados. O vitral da morte, de objetos, movimentos e gestualidades é altamente simbólico e suficiente para a leitura. Na procura da ligação ao discurso, no entanto, perde-se o “foco nos cemitérios e, por isso, nos corpos”. O silêncio pode demonstrar o poder de uma visão artística.

Inês Pinto de Faria

Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 24 e 25 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Cosmic Phase/Stage, de Ana Libório, Bruno José Silva e João Estevens, e Descansar, de Raquel S. / Noitarder.

+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 415 do jornal Folha de Montemor 

Newsletter