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Destaques

Um Sonho

Sofia Pinheiro

06 dez, 2024

Storytelling, dança e filme, som e luz foram entremeados na Blackbox d'O Espaço do Tempo nos passados dias 29 e 30 de novembro, onde Bibi Dória apresentou o seu trabalho cão de sete patas, um dos projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo (2023/2024).

Copacabana, Mon Amour de Rogério Sganzerla, a grande inspiração para a performance, parece distante da sala negra onde nos foi pedido para tirar os sapatos e sentar num chão feito de cartolinas azuis. Aqui, Bibi começa uma narração. Trechos do filme de Sganzerla são reconhecidos, outros não. O corpo da autora e intérprete, vestida de laranja intenso, ondula, às vezes mexe languidamente. Reminiscências de Sónia Silk, protagonista do filme, surgem-nos à memória, como aparições que vão e voltam, à medida que Bibi muda e passa para novo plano, ou take do espetáculo, imagem que também é trazida pela forma como interrompe o discurso com a palavra “corta”. Será um filme contado ou é ela própria a tela de um filme? 

O seu trabalho passa por preservar a memória de um filme pertencente ao espólio da cinemateca brasileira, destruída pelo fogo em 2021. Bibi torna-se memória viva do objeto de estudo, Copacabana, mon amour, decorando e relatando todas as cenas, incorporando som, imagem e sentimento. O filme de Sganzerla começa a habitar dentro de si através de sonhos que tem repetidamente. cão de sete patas surge desse questionamento entre real e imaginário, sonho e memória.

Embora seja um exercício que questiona como o sujeito constrói memória e ficção, faltou alguma clareza nessa proposta. O patchwork de quadrados, criado para o chão do evento, constituído por fragmentos que se colam, unem, sobrepõem, sugeriu a fragilidade da memória, mas também propôs a entrada ao espectador no seu sonho para a criação de uma memória coletiva. Ao convidar o público para assumir o lugar que quiser, aludiu à importância da proximidade ao objeto para a ativação dos sentidos e a criação de recordações. Será que dependem de memórias visuais, ou apoiam-se noutros sentidos? E quais são os mais importantes para essa composição? Cada um construiu a sua narrativa, através do lugar que escolheu e da forma como presenciou o espetáculo, se de olhos fechados, pernas cruzadas, deitado no chão, de barriga para baixo. 

O que é então real e o que é imaginário? Será que a memória nunca poderá ambicionar ser uma coleção de fatos, como coletânea de frames que se sucedem e dispõem de forma organizada e sequencial? Qual a relação disso com um filme, enquanto dispositivo físico de imagens e sons? Será que um filme é uma forma de memória? Isto são ótimas premissas, porém apenas disponíveis ao espectador que conheça e explore aprofundadamente o trabalho da artista. Faltam elementos cénicos para agarrar com certeza a proposta apresentada e que permitissem perceber a conexão entre a performance de Bibi no solo e a projeção na parede de uns olhos semicerrados, seguidos da ficha técnica do espetáculo. A introdução de elementos de som e iluminação inserem esporadicamente essa dicotomia entre real e fantasia no espetáculo, embora esta talvez fosse mais percetível se estivéssemos fora do palco. A experiência conjunta do inconsciente de Bibi, seja isso sonho, relato ou filme, é dificultada pelo posicionamento do público no meio da cena, pois habitualmente essa partilha apenas acontece enquanto relato após acordarmos. Por outro lado, o deambular de Bibi pelo espaço nem sempre é visível para o espetador que se encontra no chão. Embora, permita um maior recurso a ferramentas não visuais para a construção interpretativa do evento, acaba por causar distração, involuntariamente, pela audiência.

Sofia Pinheiro

Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do #ETFEST 2024, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 29 e 30 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de FLOWERS!de Mafalda Banquart / silentparty, e cão de sete patas, de Bibi Dória. 

+ Disponível na Coffeepaste

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