"Envia a tua luz e a tua verdade; que elas me guiem, que me levem ao teu monte santo, ao lugar onde habitas." (Salmos, 43-3)
Não há onde esconder num auditório iluminado. Não há maneira de nos enganarmos num palco cheio de luz.
Acordamos e ligamos o telemóvel e a tela ilumina-nos, muitas vezes antes do sol nascer. Vivemos num momento em que tememos a escuridão e seus segredos, exigimos ver e saber tudo. Isso pode ser observado em cena no trabalho de criadores emergentes, jovens millennials e zentenials. Eles nasceram iluminados por dispositivos digitais e pelas telas que os cercam onde quer que vão. O teatro do século XIX propunha começar na escuridão e decidir o que revelar com truques de iluminação. Agora, isso foi quebrado pelas novas gerações, que propõem iluminar tudo e tornar visível o truque teatral, o dispositivo. A beleza já não está no engano, mas na coreografia que leva até ele.
Talvez que a estratégia para atrair as novas gerações para o teatro seja superar o teatro da escuridão e expor-nos à luz. Foi nisso que comecei por pensar na performance-instalação Cosmic Phase/Stage, de Ana Libório, Bruno José Silva e João Estevens. A porta de entrada estava aberta antes mesmo do início, os performers já estavam a trabalhar na construção do espetáculo, o espaço estava uniformemente iluminado e uma tela na frente do palco cintilava. Como espectadores, não recebemos nenhuma indicação sobre como nos comportar.
Sem pensar, tirei o telemóvel do bolso, gravei vídeos e fotografei os momentos que me pareceram interessantes. A premissa espacial permitiu-me fazer isso, sem nenhum espectador à minha volta parecer incomodado. É um teatro sem restrições herdadas.
Assumimos que dentro do espaço sagrado teatral usar o telemóvel é uma ofensa. Mas será isso coerente numa cultura acostumada a lidar com várias coisas ao mesmo tempo, a documentar com fotos ou vídeos cada experiência e a comentá-la imediatamente? A instituição teatral costuma recusar-se a aceitar isso. No seu templo, a atenção deve estar direcionada única e exclusivamente para a cena. Mas sem entrar em julgamentos, de a cultura tecnofílica e tecno-dependente em que vivemos fazer ou não sentido, que criadores conseguem produzir espetáculos que não contrariam esse comportamento?
A peça-instalação busca criar um espaço onde dispositivos tecnológicos, robôs e humanos coexistam de forma horizontal. Assim, focos luminosos dançam em palco e competem com os performers pela atenção dos espectadores. Para deixar isso claro, em dado momento, são lidas três leis da robótica, aquelas que estabelecem que um robô não causará dano à humanidade ou que não permitirá que a humanidade sofra danos.
A peça enquadra-se na categoria de teatro pós-humano. Não é que seja novo, mas continua em vigor. A nossa relação com a tecnologia está em questionamento constante e Cosmic Phase/Stage reside nesse "vale inquietante" em que nos encontramos. A tecnologia avança descontroladamente sem nos dar tempo para responder às nossas dúvidas, mesmo aquelas sobre avanços tecnológicos que se tornaram obsoletos.
Na entrevista com o coletivo, ficou claro que não tinham interesse em criar uma narrativa, em fazer uma peça que "trata de algo". No meu caso, não entendi se os performers estavam a contar-me algo em palco. Eles apenas vomitam texto acompanhado de sons sintéticos. Consigo resgatar algumas frases e palavras soltas que me situam nesse tal contexto pós-humano, mas não me incomoda não entender. Apela-me, identifico isso com o tumulto que vai na minha cabeça.
Uma performance, para manter o meu interesse, precisa só de três coisas: uma proposta estética interessante, ritmo e um dispositivo que quebre algumas das convenções teatrais. Cosmic Phase/Stage tem as três. Assim como a luz, a narrativa é outro pilar do teatro sagrado que a geração millennial-zentenial tenta destruir. Mas há um perigo em criar uma peça que é "nada". Ao não apoiar a dramaturgia num texto, o diálogo com o público baseia-se em imagem, energia e som. A dado momento do texto, ouvimos duas frases que expõem uma incongruência dramatúrgica que me fez sair do teatro como após um coito interrompido: "Fique na experiência de duração (...). Deixe-se levar pela simulação... é agradável, não é? Não há problemas, nada com que se preocupar. Apenas passar tempo."
Ao deixar claro que este evento é mais uma instalação do que um espetáculo, eu tinha entendido que iamos submergir e passar um tempo no espaço. Senti-me tão confortável com a ideia de conviver numa simulação que até aceitei fazer isso com o meu corpo cibernético, o telemóvel colado à minha mão. Essa conversa não narrativa criou uma expectativa de experiência expandida, mas inesperadamente terminou abruptamente após 40 minutos; após uma tentativa de clímax dramatúrgico com o "elenco" a agitar-se ao ritmo da música eletrónica, até se render.
"O fim deve permanecer aberto", gritou um dos performers a meio. Mas "o fim" chegou demasiado cedo, a porta ainda não se abrira completamente.
Matías Daporta
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Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 24 e 25 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Cosmic Phase/Stage, de Ana Libório, Bruno José Silva e João Estevens, e Descansar, de Raquel S. / Noitarder.
+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 415 do jornal Folha de Montemor