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Que toda a luz do meio-dia possa causar insolação

Mafalda Banquart

29 nov, 2023

Antes de entrar, fico a saber pela folha de sala que Julián Pacomio está a fazer uma “investigação sobre o imaginário em torno da luz solar e as suas obscuridades”. Entro em conflito com a tensão dual, mas pressinto uma vontade de superação, não de confirmação: “uma peça sobre as 12:00 a.m., sobre a luz zenital do sol e toda a mitologia associada.” Não me ocorre um mito, mas uma alegoria, a da caverna de Platão, o caminho para o conhecimento como subida em direção ao sol. Luz e conhecimento. Descartes e a certeza como luz que aparece à consciência. Kant e a luz associada às promessas da razão, à ordem científica moderna que tudo quer esclarecer, enquadrar e categorizar, sem espaço para sombras, obscuridades, ambiguidades, mitologia.

Já no espetáculo, continuo a ler texto, que é projetado ao fundo, como se fosse uma extensão da folha de sala. Propõe-se que o sublime também pode ser encontrado ao meio-dia, e que este dualismo da luz e da escuridão transporta outros, como o da superfície e profundidade. Mas, se estiver escuro, “por mais profundo que seja o abismo, nunca, nunca, nunca vai dar para ver merda nenhuma”. A primeira desobediência ao dualismo, a rasgar um texto que, até ali, se tinha desenhado de modo bem-educado na sua enunciação dos temas, na sua função de nos situar. 

O chão está preenchido pela reprodução de duas pinturas que dividem o espaço, os seus contornos como fronteira. O Sabbath das Bruxas, de Goya, e uma das telas cortadas de Lucio Fontana. Do lado direito, ao alto, uma tela enviesada (Os Ceifeiros, de Bruegel). A dimensão plástica carrega em potência o mesmo desafio à ordem moderna, na superfície que é simultaneamente uma profundidade em Fontana, na composição resultante da convivência entre as três pinturas, que perturbam as minhas expectativas de enquadramento. E tudo isto debaixo de uma luz intensa, a causar calor. Começo a intuir que as oposições aqui vão derreter, não vão estilhaçar, como um edifício que se destrói a partir de dentro.

Entretanto os intérpretes (Julián, Bibi e Bruno) já chegaram e estão deitados no chão, como se estivessem a torrar ao sol, os seus corpos a coser alguma coisa que ainda se vai desenrolar. Enunciam uma série de mitos (sobretudo mediterrânicos), descrevendo figuras híbridas e quiméricas, sereias, demónios e vampiros do meio-dia (a hora sem sombras, a hora dos mortos), vampiros de outras geografias, que aparecem em plena luz solar. Vou associando o meio-dia a uma hora perigosa e a sesta a um antídoto, mas também a uma interrupção, a um período de suspensão de regras, uma possibilidade de sonho, exatamente como estou habituada a pensar na noite. Descrevem os sintomas de uma insolação, entre eles delírio, alucinação. Começo a compreender o meio-dia como compreendo a altura do lusco-fusco. Como um meio, justamente, que não é manhã nem tarde, que não se define. A ligação entre claridade, certeza e definição a ser progressivamente queimada, escorrendo. Os híbridos, que até agora ainda só apareciam nos corpos dos intérpretes de modo subtil, vão-se tornando cada vez mais presentes pela intensificação da fisicalidade. De repente, os elementos quotidianos dos figurinos - calças, camisas, chapéus - já deram lugar a rabos de burro, cornos, pele de cobra. Mas os ténis continuam calçados e os cornos são o próprio corte de cabelo de Julián. Leio agora os golpes da tela de Fontana também como marcas de garras, arranhões.

Mas a violência aqui é alquímica. É o sol que oferece as condições metamórficas para o resgate de corpos que não se querem deixar esclarecer, que reivindicam o direito a permanecer ambíguos. A iluminação é o mecanismo que permite a libertação do que a luz moderna queria circunscrever. É pela insolação que se faz a tentativa de superação dos dualismos, a perda de conhecimento também descrita como um dos seus sintomas. A metáfora de Descartes e a analogia de Platão carburadas até à falência dos seus edifícios de conhecimento, construídos a partir de oposições. 

Em We have never been modern, Bruno Latour aponta a demarcação moderna de limites (natureza e cultura, política e ciência) como o processo pelo qual se dá a proliferação de híbridos, como lava que cresce na fenda entre duas placas tectónicas. É também da fenda entre aquelas duas imagens no chão (entre o figurativo e o não figurativo, o antigo e o contemporâneo, o preenchido e o vazio) que emergem quimeras e demónios. Que é apresentada uma continuidade humano-natureza. E é aqui, na transferência do filosófico para o político, que cedo ao espetáculo de Julián, à sua denúncia que é um resgate, à sobrexposição solar das promessas da modernidade, esgotadas como num burnout.

Mafalda Banquart

Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 10 e 11 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Que Seria, de Lara Mesquita, e Toda a luz do meio-dia, de Julián Pacomio. 

+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 414 do jornal Folha de Montemor

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