Antes de entrar, fico a saber pela folha de sala que Julián Pacomio está a fazer uma “investigação sobre o imaginário em torno da luz solar e as suas obscuridades”. Entro em conflito com a tensão dual, mas pressinto uma vontade de superação, não de confirmação: “uma peça sobre as 12:00 a.m., sobre a luz zenital do sol e toda a mitologia associada.” Não me ocorre um mito, mas uma alegoria, a da caverna de Platão, o caminho para o conhecimento como subida em direção ao sol. Luz e conhecimento. Descartes e a certeza como luz que aparece à consciência. Kant e a luz associada às promessas da razão, à ordem científica moderna que tudo quer esclarecer, enquadrar e categorizar, sem espaço para sombras, obscuridades, ambiguidades, mitologia.
Já no espetáculo, continuo a ler texto, que é projetado ao fundo, como se fosse uma extensão da folha de sala. Propõe-se que o sublime também pode ser encontrado ao meio-dia, e que este dualismo da luz e da escuridão transporta outros, como o da superfície e profundidade. Mas, se estiver escuro, “por mais profundo que seja o abismo, nunca, nunca, nunca vai dar para ver merda nenhuma”. A primeira desobediência ao dualismo, a rasgar um texto que, até ali, se tinha desenhado de modo bem-educado na sua enunciação dos temas, na sua função de nos situar.
O chão está preenchido pela reprodução de duas pinturas que dividem o espaço, os seus contornos como fronteira. O Sabbath das Bruxas, de Goya, e uma das telas cortadas de Lucio Fontana. Do lado direito, ao alto, uma tela enviesada (Os Ceifeiros, de Bruegel). A dimensão plástica carrega em potência o mesmo desafio à ordem moderna, na superfície que é simultaneamente uma profundidade em Fontana, na composição resultante da convivência entre as três pinturas, que perturbam as minhas expectativas de enquadramento. E tudo isto debaixo de uma luz intensa, a causar calor. Começo a intuir que as oposições aqui vão derreter, não vão estilhaçar, como um edifício que se destrói a partir de dentro.
Entretanto os intérpretes (Julián, Bibi e Bruno) já chegaram e estão deitados no chão, como se estivessem a torrar ao sol, os seus corpos a coser alguma coisa que ainda se vai desenrolar. Enunciam uma série de mitos (sobretudo mediterrânicos), descrevendo figuras híbridas e quiméricas, sereias, demónios e vampiros do meio-dia (a hora sem sombras, a hora dos mortos), vampiros de outras geografias, que aparecem em plena luz solar. Vou associando o meio-dia a uma hora perigosa e a sesta a um antídoto, mas também a uma interrupção, a um período de suspensão de regras, uma possibilidade de sonho, exatamente como estou habituada a pensar na noite. Descrevem os sintomas de uma insolação, entre eles delírio, alucinação. Começo a compreender o meio-dia como compreendo a altura do lusco-fusco. Como um meio, justamente, que não é manhã nem tarde, que não se define. A ligação entre claridade, certeza e definição a ser progressivamente queimada, escorrendo. Os híbridos, que até agora ainda só apareciam nos corpos dos intérpretes de modo subtil, vão-se tornando cada vez mais presentes pela intensificação da fisicalidade. De repente, os elementos quotidianos dos figurinos - calças, camisas, chapéus - já deram lugar a rabos de burro, cornos, pele de cobra. Mas os ténis continuam calçados e os cornos são o próprio corte de cabelo de Julián. Leio agora os golpes da tela de Fontana também como marcas de garras, arranhões.
Mas a violência aqui é alquímica. É o sol que oferece as condições metamórficas para o resgate de corpos que não se querem deixar esclarecer, que reivindicam o direito a permanecer ambíguos. A iluminação é o mecanismo que permite a libertação do que a luz moderna queria circunscrever. É pela insolação que se faz a tentativa de superação dos dualismos, a perda de conhecimento também descrita como um dos seus sintomas. A metáfora de Descartes e a analogia de Platão carburadas até à falência dos seus edifícios de conhecimento, construídos a partir de oposições.
Em We have never been modern, Bruno Latour aponta a demarcação moderna de limites (natureza e cultura, política e ciência) como o processo pelo qual se dá a proliferação de híbridos, como lava que cresce na fenda entre duas placas tectónicas. É também da fenda entre aquelas duas imagens no chão (entre o figurativo e o não figurativo, o antigo e o contemporâneo, o preenchido e o vazio) que emergem quimeras e demónios. Que é apresentada uma continuidade humano-natureza. E é aqui, na transferência do filosófico para o político, que cedo ao espetáculo de Julián, à sua denúncia que é um resgate, à sobrexposição solar das promessas da modernidade, esgotadas como num burnout.
Mafalda Banquart
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Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 10 e 11 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Que Seria, de Lara Mesquita, e Toda a luz do meio-dia, de Julián Pacomio.
+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 414 do jornal Folha de Montemor