Imagine-se um carrocel manejado por Raquel S., que em vez de cavalinhos tem estátuas tumulares, urnas com macarrão colorido, arcas frigoríficas, a morgue, campas, ossários, uma gólgota e o “peso da vida para levarmos às costas”. Uma voltinha de 60 minutos pela dor, o absurdo, o belo e o muito belo e a pública e popular estética sepulcral ao som de trovões, à luz de relâmpagos.
Duas atrizes – Júlia Valente e Leonor Cabral – dramatizam um espetáculo para pessoas dificilmente impressionáveis. Chamam o António, numa Toy-história de fantasmas, escrita em comic sans sobre a poética dos epitáfios, vestindo-se de mortas e de vivas, de mortas-vivas, onde há também a arqueóloga futurista, a tanatóloga existencialista, a coveira humorista. São assombrações, aparições e esculturas de cemitério.
No cenário de Pedro Azevedo são personificados o estar vivo e morrer, “ser barra estar, heis a questão” e a sua caveira. Faz-se uma lista de nomes que não se conservaram e outros que se omitiram, como o das viúvas, das irmãs, das extremosas esposas e das muito extremosas esposas. Acontecem monólogos e retóricas num tempo sem sucessão que é o da morte, incitando pensamentos sobre a rentabilização e ritualização do luto, o buraco sem saída de emergência em que se sucumbe, para esquecer e ser esquecido.
Uma narrativa do desaparecimento da carne acontece numa projeção ao estilo PowerPoint kitsch com varejeiras, “varejeiras adultas” e varejeiras que “abandonam” o corpo. É uma cronologia da invasão, podridão, decomposição que acaba na vegetalização.
A tragédia? O drama? O horror? Seria assim que Artur Albarran apresentaria esta peça, que recorre a estratégias dramatúrgicas de universo infantil e “foleiro” – palavra usada pela autora – para fantasiar com fantasmas e evocar o sem-sentido que é a morte. Porque difícil é viver, suando uma vida inteira com a certeza de que não vamos sobreviver. Ser-se um corpo e morrer por isso mesmo. Ter consciência (essa “lanterninha sem pilha”) de que tudo isto é o que nos acobarda. O medo é sempre o último a sair.
Esta tentativa de coser tudo num mesmo painel confunde, puzzles the wheel, e não há pedra grande o suficiente para pôr sobre tantos assuntos, o tempo escasseia para nos envolvermos em cada momento.
“Descansar” poderia ter à entrada o aviso Mind the cova, e ainda assim não seria suficiente. O que encontramos é uma vala comum. A diretora artística não abdica de nada e faz desfilar fragmentos, documentos, ideias, imaginações. Um gabinete de curiosidades que só não tem mais porque “mais não pôde”.
Inês Pucarinho
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Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 24 e 25 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Cosmic Phase/Stage, de Ana Libório, Bruno José Silva e João Estevens, e Descansar, de Raquel S. / Noitarder.
+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 415 do jornal Folha de Montemor