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Mind the Cova

Inês Pucarinho

12 dez, 2023

Imagine-se um carrocel manejado por Raquel S., que em vez de cavalinhos tem estátuas tumulares, urnas com macarrão colorido, arcas frigoríficas, a morgue, campas, ossários, uma gólgota e o “peso da vida para levarmos às costas”. Uma voltinha de 60 minutos pela dor, o absurdo, o belo e o muito belo e a pública e popular estética sepulcral ao som de trovões, à luz de relâmpagos.  

Duas atrizes – Júlia Valente e Leonor Cabral – dramatizam um espetáculo para pessoas dificilmente impressionáveis. Chamam o António, numa Toy-história de fantasmas, escrita em comic sans sobre a poética dos epitáfios, vestindo-se de mortas e de vivas, de mortas-vivas, onde há também a arqueóloga futurista, a tanatóloga existencialista, a coveira humorista. São assombrações, aparições e esculturas de cemitério. 

No cenário de Pedro Azevedo são personificados o estar vivo e morrer, “ser barra estar, heis a questão” e a sua caveira. Faz-se uma lista de nomes que não se conservaram e outros que se omitiram, como o das viúvas, das irmãs, das extremosas esposas e das muito extremosas esposas. Acontecem monólogos e retóricas num tempo sem sucessão que é o da morte, incitando pensamentos sobre a rentabilização e ritualização do luto, o buraco sem saída de emergência em que se sucumbe, para esquecer e ser esquecido.  

Uma narrativa do desaparecimento da carne acontece numa projeção ao estilo PowerPoint kitsch com varejeiras, “varejeiras adultas” e varejeiras que “abandonam” o corpo. É uma cronologia da invasão, podridão, decomposição que acaba na vegetalização.  

A tragédia? O drama? O horror? Seria assim que Artur Albarran apresentaria esta peça, que recorre a estratégias dramatúrgicas de universo infantil e “foleiro” – palavra usada pela autora – para fantasiar com fantasmas e evocar o sem-sentido que é a morte. Porque difícil é viver, suando uma vida inteira com a certeza de que não vamos sobreviver. Ser-se um corpo e morrer por isso mesmo. Ter consciência (essa “lanterninha sem pilha”) de que tudo isto é o que nos acobarda. O medo é sempre o último a sair.  

Esta tentativa de coser tudo num mesmo painel confunde, puzzles the wheel, e não há pedra grande o suficiente para pôr sobre tantos assuntos, o tempo escasseia para nos envolvermos em cada momento. 

“Descansar” poderia ter à entrada o aviso Mind the cova, e ainda assim não seria suficiente. O que encontramos é uma vala comum. A diretora artística não abdica de nada e faz desfilar fragmentos, documentos, ideias, imaginações. Um gabinete de curiosidades que só não tem mais porque “mais não pôde”. 

Inês Pucarinho

Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 24 e 25 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Cosmic Phase/Stage, de Ana Libório, Bruno José Silva e João Estevens, e Descansar, de Raquel S. / Noitarder.

+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 415 do jornal Folha de Montemor

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