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Corpos Gordos, Gente Magra 

José Maria Mendía

29 nov, 2023

Uma mulher, de costas, nua, corpo possante, gordo, cheio de abismos, caminhos, franjas, entra em palco a carregar um adereço; na outra ponta do adereço, um homem, também nu, com o corpo tatuado, argolas prateadas largas nas orelhas, mas de frente. Este corpo, o de Ana Amaral, virá a ser Barbary, a criada de Desdémona; este corpo, o de Daniel Moutinho, será Otelo. Os adereços que carregam compõem o cenário de Que Seria: três escadas cor de laranja e nada mais, para além do fundo também cor-de-laranja. 

Um a um, os protagonistas apresentam-se: Catarina Amaral, uma mulher bela e jovem, ingénua, com uma pose solar, que imagino ser aquela das deusas do antigo Egito, será Desdémona; Júlio Mesquita será Iago. Ator mais maduro e consciente do potencial do seu corpo, articula-o para representar o papel de antagonista no seu cinismo secreto, titubeando, na sua frustração, prenunciando uma agenda apoiada pela sua mulher. O corpo de Manuela Paulo, que será Emília, é outro corpo forte, vibrante, empertigado, atraente. Brilhante. Abertamente cínica, é quase má. Vive um estado de indiferença, de violência passiva contida, com trejeitos de superioridade e comentários indesculpáveis mas protegidos. É uma mulher de alta sociedade, na ignorância de que a sua certeza é o caule da podridão. 

A dupla Júlio Mesquita e Manuela Paulo constrói um centro de gravidade, mantém uma intimidade esculpida pelos interesses, pela intensidade, pela tesão. Os dois têm uma força que é reforçada na comunhão, gerando o ódio para parir a maldade e criar a morte. Marido e mulher, Iago e Emília irradiam uma energia que o outro casal não partilha: Desdémona e Otelo estão perdidos na incerteza e instabilidade do amor. 

Frágil na sua condição biológica, Otelo tem uma valiosa posição profissional, que, contudo, carrega um ressentimento histórico, uma insegurança perante uma corte de privilegiados que não o reconhece. Embora um romântico virtuoso, um poeta do amor, um manipulador do coração, do seu e de Desdémona, desconfia do real valor do último sentimento: o amor. Cássio, interpretado por Pedro Nuno, é o bestie de Desdémona. Move-se como a caricatura de um novo-rico, na ilusão do privilégio justificar as suas ações. Quando não está a caminhar, como se numa passerelle, com um top em rede sob o fato castanho Gucci, ton sur ton, exibe um corpo clássico, perfeitinho, sem reprimenda nem discriminação. Efeminado e assumidamente gay, as suas opções são limitadas: como personagem secundário, é suficiente. 

Como é costume nas tragédias de Shakespeare, o texto começa por nos desvendar o seu segredo e, depois, oferece-nos um conjunto de personagens-tipo em que o enredo as constrói e desconstrói até à morte. Esta narrativa é sintomática de sentimentos de poder, de vingança, de amor, de inveja ou até de maldade. Que Seria usa a tragédia de Otelo e reforça o tema do racismo. Sobre uma densa camada política, a encenadora acrescenta outra e faz um negativo da peça: as personagens brancas são negras e as personagens negras, Otelo e Barbary, tornam-se brancas. “Que seria”, se o mundo do privilégio, do poder, do dinheiro, do mal, do pretensiosismo fosse, afinal, o dos negros? O texto, atualizado e simplificado, cria um universo empresarial em que, das seis personagens, três vão morrer.  

Assumindo ou não a proposta de Lara Mesquita, experimentamos um discurso invertido, mas substancialmente construído pela encenadora, onde esta faz um exercício de especulação, de articulação de preconceitos e de suposições, na ótica da clivagem racial. Para a construção do texto, Lara Mesquita usa diversos materiais: Shakespeare, naturalmente, inteligência artificial, apontamentos biográficos dos atores e uma peça de Toni Morrison, Desdémona. Ao invés do original de Shakespeare, em que a criada é só uma memória de infância de Desdémona, na Desdémona de Toni Morrison a criada negra é uma personagem em diálogo direto com a patroa. ‘A mini-patroa’. Surge num tempo em que se procura a voz de figuras outrora silenciadas. O exercício de inversão vive em torno dessa premissa: o de colocar o silenciador no lugar do silenciado para, como diz Lara Mesquita, chegar ao estado de humildade. Só que a humildade não pode existir sem empatia.

José Maria Mendía

Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 10 e 11 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Que Seria, de Lara Mesquita, e Toda a luz do meio-dia, de Julián Pacomio. 

+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 414 do jornal Folha de Montemor

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