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Chique, mas não no inferno

José Maria Mendía

12 dez, 2023

Leonor Cabral, saída da plateia, percorre o palco para suportar vivos, mortos e fantasmas. Desorientada, caminha sobre saltos-altos. Arrogante, de classe média-alta, cai numa cova. “Trabalhou até ao fim” para se esconder. Uma fragilidade vivida na morte que a mise-en-scène prenuncia. Vestida de preto, ostenta um luto com uma saia vinílica, camisa de ombreiras, saltos-altos, óculos escuros e um chapéu. Será vítima de um epitáfio frustrado. Por seu lado, Júlia Valente será coveira, mensageira, anjo, alma, acompanhante, tanatóloga, arqueóloga e apresentadora de um in memoriam a nomes esquecidos. As duas irão entreter-nos com quadros ligeiros ou alegóricos que se sobrepõem em pequenas variações tónicas.

O palco foi elevado para criar uma caixa, oca, nessa caixa encontramos uma cova, um ossário, um baú retangular em inox e um monte de pó. “Descansar” convoca uma lógica contrapontística de vida e morte. De memória e esquecimento. De aceitação e negação. A comédia predomina e é mais clara nos movimentos e gestos. É o caso da mulher que cai na cova durante uma tempestade. Uma queda abrupta, mas que desacelera, os membros vão-se atrasando, as pernas ficam suspensas no buraco, um vazio escuro. Há momentos desesperantes: um telefonema feito para a vida durante a morte. Há momentos contemplativos: quando Leonor está sentada no baú de inox, com um olhar abstrato, e Júlia encosta a cabeça no ombro da colega. Fundem-se. Leonor olhar para trás, os lábios quase se tocam, figurando uma escultura clássica. Psique sussurra ao ouvido de Eros: um encontro, finalmente.

Na “Inscrição” de Pessanha, que abre Clepsydra, lê-se: “Eu vi a luz em um país perdido./ A minha alma é lânguida e inerme./ Oh ! quem pudesse deslizar sem ruído !/ No chão sumir-se, como faz um Verme...” Ele diz-nos o que viu, diz-nos o que foi, diz-nos como quis fazer a viagem. Já nós, estamos obcecados com a procura de uma inscrição que fará da nossa experiência um espetáculo.

Dizem os otimistas, os bêbados ou os cobardes, que a morte deve ser abordada com leviandade e comédia. Já os pessimistas, os sérios ou os intelectuais precisam de artifícios para contar a sua relação perversa com a morte, com o sentimento que está por trás da incontestável força do primeiro fim. Assim, depois de errar durante anos em cemitérios, dando alento à sua atração por imagens fúnebres, por relíquias, textos e inscrições sepulcrais, a encenadora Raquel S. montou um dos vários espetáculos que esconde na sua cabeça romântica. Habita o cemitério como se fosse uma cidade de vivos, com a diferença de terem sido esquecidos. Os pobres vivem em campas, os ricos vivem em jazigos.

Em Descansar, o caminho percorrido até à morte foi esquecido. Faz antes um movimento circular entre o limbo e a fantasmagoria. Contorna a causa e discute a consequência. Impedindo, assim, de se chegar à questão última da memória, da escritura, do epitáfio. Quando a obscuridade está bem articulada e estão montadas as fundações para a cena – um cemitério - com penumbra e magia, pode e deve ir-se ao inferno e voltar. Porém, o inferno não aparece para justificar a presença dos fantasmas. A fuga da encenação para a comédia ignora o bafo insuportável de Belzebu. 

Em tempos já vividos poetas quiseram habitar o inferno com uma felicidade assombrada: quando a terra não lhes serve, os ingratos condenam-se ao horror, resignam-se, sorrindo com orgulho. A morte é a nossa mais assustadora experiência. Depois de todo o sofrimento e das ilusões, depois de confrontada a inutilidade da religião, até depois de rir, resta-nos seguir caminho. Mas os epitáfios não preenchem o espaço vazio quando os atos não bastam para um louvor digno e respeitável. Todos queremos ser recordados, mas os discursos, ações, gestos, movimentos e danças morrem logo a seguir à performance. Resta-nos zelar pelos nossos, infelizmente. 

José Maria Mendía

Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 24 e 25 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Cosmic Phase/Stage, de Ana Libório, Bruno José Silva e João Estevens, e Descansar, de Raquel S. / Noitarder.

+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 415 do jornal Folha de Montemor

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