Lara Mesquita instrumentalizou Shakespeare com a sua adaptação de Otelo para o trazer até nós, para existirmos também neste lugar, um lugar que não nos foi concedido naturalmente pela herança ocidental, um lugar apenas possível através da ocupação, de muita luta, de muita dor, de muita denúncia e militância.
Não, não é demais repetir que o privilégio branco não é invisível, que a estigmatização racial nos impede de começarmos o jogo na mesma casa de partida que todos os outros jogadores, as regras para nós são ainda diferentes. A “viga de cimento caiado” é intocável ainda para muitos, e a ocidentalidade clássica é um imaginário inabitável para aqueles cuja proporção de melanina determina o seu lugar, e esse lugar é fora, é periférico, suburbano, marginal, é o lugar do outro.
Em Que Seria um Otelo branco casa-se às escondidas do seu patrão com a filha dele, uma negra, que para além de lhe permitir um lugar na sociedade, lhe permite viver numa ilusão de aceitação. O exercício de inversão é claro. Após uma contextualização que nos é oferecida logo no início de forma puramente informativa (não vá alguém ainda tentar refutar que são coisas da nossa cabeça), recorrendo à inteligência artificial, sobre o que é viver uma vida a ser-se o Outro, e existir na constante busca de uma identidade descolonizada e inteira, entramos em cena para que se traga o “monstro cá para fora”.
A encenadora veste-nos com a pele do lobo, de serpente, de diabo e propõe conhecermo-nos de novo: através de Iago e Emília permitiu-me vivenciar aquela estranha e vergonhosa vontade de vingança; e através de Cassio de rir livremente e publicamente, de ridicularizar o ritmo dos brancos e desmascarar o banho de “inocência negra” (uma inversão da condescendência branca) de Desdémona, pela sua ama Barbary. O fingimento e a ficção dão-nos o potencial de expulsão dos nossos demónios.
Não sei se alguém se sentiu seguro enquanto expectador desta peça, dela brotam divertimentos maliciosos, que não sabemos bem se os queremos sentir, mas não os podemos evitar, afinal esta não é uma proposta de anulação, mas sim de existência, talvez de libertação. Legitimei-me como dono do meu lugar que vê Otelo a lutar com a sua raiva insana, à beira do descontrolo e desespero. O coitado está perdido de ciúmes infundados, é o medo que o move acima de tudo, o medo de voltar ao início da sua inexistência… aquele desgraçado está a sentir aquilo tudo naquela sua branca pele.
Um negro a manipular e a destruir um branco em palco é meio caminho andado para uma plateia polarizada entre o achar-se que esta estratégia cénica de mundo ao contrário oscila entre o extremamente simples e eficaz e o não sei se devíamos ter ido por aqui.
Sabermo-nos seguros impede-nos, no entanto, o acesso ao autoconhecimento e de observarmos as fronteiras que nos limitam. Que territórios queremos reclamar como nossos? Pode o amor ultrapassar o trauma e o exílio em que vivemos - o que nos infligem e o que nos autoinfligimos? É possível a inversão de uma problemática como esta, a da desigualdade racial, igualar a sua vivência? Não basta que eu lhes empreste os meus sapatos, porque eles não caminharam o caminho todo que está para trás…
I can’t breathe é a premissa que Lara Mesquita imprime enquanto não nos for concedido o estatuto inquestionável e inegável de total pertença a todos e quaisquer mundos cénicos e dramatúrgicos. A asfixia do preconceito, da misoginia, do racismo e da injustiça tão intrinsecamente humana, não permite a ninguém em Que Seria de sair ilibado de culpa. Foi entre o desconforto e a gratidão que me encontrei neste espetáculo, entre o dentro e o fora, simultaneamente no meu espaço e no deles, violento e vítima, julgador e condenado.
O culminar desta promessa de empoderamento, à qual me estava a habituar, ruiu por terra quando, na cena de morte de Desdémona por Otelo, assisti ofegante a mais um homicídio de uma mulher, negra, cometido por um branco. I can´t breathe.
Inês Pucarinho
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Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 10 e 11 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Que Seria, de Lara Mesquita, e Toda a luz do meio-dia, de Julián Pacomio.
+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 414 do jornal Folha de Montemor