Quando a minha mãe morreu, a minha avó mandou fazer uma lápide com um texto.
A fonte é comic sans.
Descansar é um projecto Noitarder que vê o cemitério tanto como lugar de memória e saudade, como enquanto lugar de esquecimento e estratificação social, como enquanto repositório de uma forma literária expressiva, emotiva e desierarquizada: as palavras nas campas.
À querida filhinha Izabel Maria com eterna saudade dos seus paes Carolina e. Alvaro
ou
PORQUE SENHOR
DO CAOS TUMULTUARIO
TÃO BELA
E ESPERANÇOSA
ERGUESTE A VIDA
SE AO PÉ DA VIDA
COLOCASTE A MORTE
PORQUE
ou
DEIXA A COSTURA E VEM COMIGO AO PÃO
Como se expressa a perda? O que escrevemos em pedra? Com que floreiras, que anjos de pedra, que espinhos de mármore, que livros de granito? No primeiro espectáculo da Noitarder, Longe, pensámos acerca de como nos escapam constantemente as imagens mentais dos nossos mortos, diluÃdas noutras memórias. DESCANSAR continua o tema, mas foca-se nos cemitérios e, por isso, nos corpos. Por um lado, no que acontece a um cadáver: o que fazem as funerárias, os hospitais? O que acontece aos nossos caixões, à s nossas roupas, aos nossos ossos, aos nossos cabelos?Â
E, do lado dos vivos, o que fazemos? Que rituais, onde? Que decisões estéticas tomamos? DESCANSAR procura pensar acerca dos cemitérios e da presença destas tensões: são lugares de homenagem mas, também, de leitura de diferenças sociais e polÃticas, económicas e de género, entre outras.
O cemitério é um espaço altamente performático: por um lado, ritualÃstico; por outro, quotidiano (há tigelas de comida de gato, vassouras atrás de jazigos, hastas públicas); é também um espaço público que implica opções estéticas tomadas por muitas pessoas. É ainda um limiar: os mundos dos vivos e dos mortos co-existem. Há uma presença simbólica, imaginária, religiosa, fantasmagórica. E um movimento lento e imparável: a decomposição.
O cemitério é um lugar de cruzamento e tensão: e, por isso, iminentemente teatral.
Antes de tudo, uma imagem:
Uma pessoa está deitada numa caixa de vidro. O topo está coberto de terra. Uma mão fura o topo mas não como se fosse um zombie num filme, que vem para matar: é antes como uma planta, como se depois de mortos pudéssemos chegar a ser vegetais.