Em 2019, tive uma ideia para fazer uma encenação de ópera. Seria uma peça dançada em que os cantores estariam escondidos atrás dos panos e no palco estariam apenas bailarinos a traduzir o libreto em Língua Gestual Portuguesa, fazendo corresponder as variações e composições melódicas da voz através de um trabalho de expansão do gesto para o corpo. Esta ideia não foi concretizada e acabou por ser desdobrada em várias iterações de menor dimensão, entre as quais Coreografia (2020) e Está visto (2023). A vontade era que a dança surgisse, não de um lugar de expressão física ou metafísica, mas de uma partitura de letras e palavras que, enunciadas, dariam expressividade ao corpo. Para isso, estava interessado na operação de tradução como forma de chegar ao lugar da linguagem através da expressividade da língua. Explorando diferentes sistemas da língua — a fonética, a escrita e o gesto — como matéria para fazer o corpo ressoar, esta prática desaguou num conflito entre comunicação e expressão do corpo que o faz transbordar enquanto textura, sensualidade e sensação.
É Obra (Ópera) tenta dar continuidade a esta pesquisa e reciclar a ideia inicial. Embora não pretenda encenar uma ópera, centra-se na ideia de tradução do som em corpo e paisagem e questiona o eterno problema da autonomia da dança face à sua dependência estrutural da música. É Obra (Ópera) procura emergir a partir de um lugar de experimentação da dança enquanto criação de expressividade do corpo por si, através de uma interação entre gesto, som e signo, expandindo o corpo à sua condição social mais imanente, movendo-se em direção à carne. Se os trabalhos anteriores consistiam em solos acompanhados de música ao vivo (acordeão no caso de Coreografia, e piano no caso de Está Visto), este trabalho retorna ao silêncio como lugar de imanência e procura como criar estrutura coreográfica através da própria dança colaborando com um coletivo de oito bailarinos. ⎯ João dos Santos Martins