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Destaques

Whiteface, blackface

Matías Daporta

29 nov, 2023

Outra peça de uma artista negra a denunciar o racismo estrutural. Que seca. Ninguém quer ir ao teatro para ser chamado de racista. Bem, talvez haja pessoas que queiram. Eu não. Não gosto de me sentar na plateia para ouvir um discurso que já conheço. E se a maioria das pessoas sente a mesma rejeição, de que serve levar a denúncia ao palco?

Que Seria, que estreou no ET/FEST, em Montemor-o-Novo, é uma peça teatral em que Lara Mesquita nos convida a questionar o que seria do mundo se as pessoas que desfrutam de mais privilégios fossem as da comunidade negra?

Ela baseia-se no Otelo, de William Shakespeare, como base do projeto, e inverte a cor da pele dos personagens. No Otelo de Mesquita, os negros comportam-se de maneira racista e discriminatória em relação aos personagens brancos. Com essa inversão, a autora procura destacar como a sociedade trata as pessoas negras e promover a empatia do público por elas. Mesquita espera que o público branco, ao ver-se representado na situação de discriminação e racismo através do corpo do ator branco, compreenda melhor as violências que a comunidade negra sofre no dia-a-dia.

Mas caramba. Que preguiça. Que Seria conseguiu confrontar-me, não com meu racismo, mas como me relaciono com o teatro de denúncia.

A inversão de raça em personagens de ficção não é nova: Hamlet já foi negro, Rei Lear, Romeu e Julieta também, e nos últimos anos vimos a mudança na cor de pele em Ana Bolena, na rainha alemã Carlota, Annie, Ariel de A Pequena Sereia, Marie Jane (namorada do Homem-Aranha). É um gesto realmente importante para compensar a lacuna representacional da comunidade negra nas criações culturais, mas lamentavelmente não nos deu rainhas negras que escravizam, negros que se comportam conforme estereótipos brancos e, em geral, personagens desprovidas de um contexto cultural próprio. O gesto de inversão faz-me questionar os benefícios que pode trazer à luta antirracista; não consigo ver como colocar pessoas negras representando histórias brancas, cuja narrativa política e contexto sociocultural se formula dentro da estrutura racista que se busca desarmar, pode contribuir de maneira positiva.

A exposição inicial é superpotente: o que aconteceria se as pessoas negras fossem as privilegiadas neste mundo? A potência especulativa é brutal, que futuros sociorrelacionais Mesquita nos ofereceria a partir de sua perspetiva antirracista e negra? Mas as minhas expectativas eclipsaram o exercício que realmente ocorreu: uma peça de Shakespeare sobre ciúmes e vingança interpretada por atores negros.

A cena de Otelo é enquadrada por dois vídeos escritos pelo assistente virtual chatGPT. Mesquita entrevistou esta inteligência artificial sobre a história do racismo e apresenta-nos a resposta em formato audiovisual interpretada por uma atriz, sem alterações. Os vídeos são informativos, mas carecem de alma. A artista decidiu não trabalhar com a sua poética e um espectador familiarizado com a história do racismo desconeta-se, porque não acrescentar nada de particular. Ao enquadrar Otelo entre esses dois vídeos, fecha as possibilidades de interpretação das cenas, limitando a nossa experiência.

O momento em que a peça nos aproxima mais de uma experiência transformadora é quando inverte uma cena de blackface. Durante uma festa, um dos personagens negros fica bêbado, coloca uma peruca loira e pinta o rosto de branco com creme de bolo; numa cena posterior, outro casal negro ri muito dessa situação. Mesquita consegue tocar a pele. Se o whiteface nos incomoda, o blackface também deve incomodar. A eficácia da cena reside no absurdo, no hilariante e histriónico da interpretação dos atores e atrizes. A intensidade interpretativa, a carga ontológica do gesto é audaciosa, vai até o fim com a cena e não se desculpa por isso.

Fez-me pensar no filme Corra!, de Jordan Peele. O seu impulso criativo é muito semelhante ao de Lara Mesquita, embora divirjam na estratégia. Tinha a expectativa de assistir a um thriller de terror psicológico, não a uma obra de denúncia. Fiquei a conhecer a ficção de um jovem afro-americano que visita a família da sua namorada branca, um casal rico que se comporta de maneira tão complacente com ele que se torna desconfortável e suspeito. O discurso antirracista é incorporado numa história complexa que nos prende. A perspetiva é nova e abre caminhos para nos repensarmos.

Perto do final, os atores, fora dos seus personagens, dirigem-se a nós para expor como a nossa interpretação da obra é racista. Uma das atrizes negras denuncia que corpos como o dela têm mais dificuldade em aceder aos palcos. Mas, vamos lá! Vocês conseguiram a bolsa d'O Espaço do Tempo. É assim que desejam tomar o espaço e explorar e aproveitar suas possibilidades?

Em conversa com a artista, ela disse que no seu desenvolvimento artístico precisa de trabalhar sobre este tema porque é sua realidade mais imediata. Que estratégias, no entanto, podemos imaginar que nos permitam expor discursos críticos sem comprometer o interesse do público e, até alcançar um público mais amplo?

Matías Daporta

Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 10 e 11 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Que Seria, de Lara Mesquita, e Toda a luz do meio-dia, de Julián Pacomio. 

+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 414 do jornal Folha de Montemor

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