A cada ano que passa a sensação térmica nesta região do Alentejo aproxima-se de um Verão mais quente do que o anterior. Escapar parece ser o único remédio. A fuga pode ser partir ou pode ser encontrada na forma como se decide ficar. O espetáculo Toda a luz do meio-dia explora o que há aqui e o que aqui se sente. A alvorada, ou ainda o crepúsculo, são momentos aproveitados para trabalhar e fugir ao calor, sendo o sono compensado numa fase mais avançada do dia, quando o sol não perdoa e não dá descanso aos que o confrontam com a sua presença ativa. Com um olhar, por exemplo. O trabalho no campo nessas horas, as de maior calor, atrapalha o raciocínio: “Quem olha de frente o sol e a morte, magoa-se”. Ou é o raciocínio que atrapalha o trabalho? O foco está no agora, na realização da tarefa sem grandes distrações na mente, para que o erro se extinga e não impeça a continuação do trabalho que nunca acaba. Foge-se ao sol na sesta e foge-se à morte na aceitação do destino fatídico da vida, a rotina.
A fim de representar visualmente a atividade no campo durante o verão, está presente em cena a pintura Ceifeiros, de Bruegel. O plano mais aproximado ilustra a ceifa e a sesta, enquanto o plano de fundo, com o horizonte ao longe, evoca a calma da planície, o tempo que se instala e o provérbio “devagar se vai ao longe”. Os paradoxos, as antíteses, as metáforas, são caminhos nos quais o espetáculo se move para a construção da cena e que lhe conferem cor, textura, estranheza.
Ao adormecer, debaixo do sol, o dia é entregue ao inconsciente. O adormecido é aquele a quem a passividade desculpabiliza. Baseado na mitologia antiga, o espetáculo de Julián Pancomio revela que é ao meio-dia que as criaturas sem sombra podem existir, mas em reverso, são paridas de uma impossibilidade, de um beco sem saída, de um abismo. A sesta, tal como a passividade, são fragmentos desse abismo, corroem, tornam-se estados agitados sem motivo aparente, porque o centro ativo do sofrimento é incógnito e não é reconhecido como negativo. É como enterrar a cabeça no pecado, o momento de recuar perde-se. E à medida que se toma o gosto em desbravar o sítio onde se acordou sem ter ido dormir, uma parte da alma sucumbe. O acordar pode ser visto como uma ponte para um sonho que não se escolheu ter, passa-se o tempo a tentar fugir à aceitação do esquecimento. Como um erro, uma lacuna. E como tudo de que se foge corre para nos atormentar, nessa ponte, enquanto a sesta avança, os demónios sentem o cheiro de quem tem os olhos fechados e protegidos. Chegam mesmo a provar-lhe o gosto e a afirmar que são salgados. Trabalham tanto contra si próprios que só no fim do trabalho, ao aproveitarem o mais simples prazer de refrescar a garganta, se sentem vivos. Existem e não existem, como a luz que esconde e que revela. Como o contrónimo, a palavra transparente, descreve aquele que é invisível e é nítido. Será mais fácil fazer um pacto com Lúcifer, com Belzebu? Os Astecas faziam sacrifícios para falar com ele. Sacrificavam o hoje pelo amanhecer que sempre chega. A vida terrena pode ser um inferno, mas tal como os vampiros, que são uma brecha no sistema da própria mitologia, e precisam da ausência e da presença para existir, talvez o significado da palavra inferno precise de ser desaprendido. Se calhar é tempo de lucidez.
Carolina Pequito
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Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 10 e 11 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Que Seria, de Lara Mesquita, e Toda a luz do meio-dia, de Julián Pacomio.
+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 414 do jornal Folha de Montemor