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It is like the big bang

Pedro Nunes

07 dez, 2023

Há uma qualquer universalidade na expressão de um trabalhador durante a sua pausa para cigarro nas traseiras de um restaurante – uma fadiga in media res, a extenuação de um cessar-fogo, que se assemelha à dos seus pares, algures provisoriamente em paz, à mesma hora, noutro beco do mundo. Quando o primeiro andamento de Cosmic Phase/Stage termina, um dos intérpretes desloca-se até à porta da sala – nunca fechada, simplesmente passagem, um local de entrada ou saída – e fuma um cigarro. Aquele corpo está em pausa. Só agora foi possível ver-lhe o rosto: a expressão denota um turno longo, cansado. Mas nós somos mais do que aquilo que fazemos. A precariedade nas artes conduz-nos do palco para o balcão com a certeza de que podemos não voltar. A exaustão é igual em toda a parte. 

Ao aparentarem limitar-se ao cumprimento de uma função, a de montar uma estrutura-criatura em tempo real, ao procurarem despersonalizar-se, fintarem as personagens e executarem um protocolo preciso, as seis pessoas que habitam o espaço cénico fundam um laboratório para a humanidade, condensado e pipetado em detalhes – alguns, talvez os mais potentes, mero subproduto da existência, da copresença. 

Numa instalação em que a prerrogativa discursiva é partilhada com objectos em quase curto-circuito, a rendição ao sobreestímulo é tentadora. A tecnologia assoberba o espaço, na mesma medida em que a vegetação perfura as fendas de uma ruína. Aliás, está conquistado o ponto em que será mais justo declarar o óbito do edificado e proclamar o novo reino vegetal-robótico. Cabos, tubos, suportes, ligações dominam a estrutura em que es intérpretes se movimentam, executando tarefas concretas, desenhadas como proposta coregráfica, resultado de um enunciado teórico-performativo sobre a automação, enquanto algoritmo – no caso da máquina – e enquanto repetição – no caso de gente.

Perante esta soberania do dispositivo, do artifício, seria previsível uma obsessão perfeccionista com o rigor e a exactidão, projectadas, por hábito, sobre quem ou o que não foi pensado para errar. No projecto de Ana Libório, Bruno José Silva e João Estevens essa premissa é rejeitada. Estar refém da técnica, exposto à falha não-humana, é algo tão imprevisível como fértil. Criar sobre a aleatoriedade pode ser um risco delicioso. O jogo não assenta no descontrolo, mas na capacidade des intérpretes para gerir uma relação dramatúrgica não-hierarquizada entre es entidades que atuam – a luz de um projector, por exemplo, tão símbolo como matéria, tão rasgo como substância, deve ser entendida como proposição de contracena. Esta horizontalidade de precedências interpela o batalhão de expectativas com que entramos num espaço teatral – não viemos para combater.

O bom desconforto mantém vivos os modos de ver. O desequilíbrio cénico consegue ser um exercício mais honesto do que a tentativa de harmonia focal, na medida em que não direcciona o espectador, mas convida à escolha. A sugestão, portanto, é a de que entramos num espaço comum, sem territórios reclamados. O tecto está baixo, a luz de serviço acesa – o espectáculo não começa. Eppur si muove. A certo ponto, o aparato truss é elevado e transfere a rave cósmica da cave para a caixa-preta, o que ironicamente injecta na cena um formalismo, ou um código-convenção. A subida da estrutura ergue a quarta parede e distancia o espectador do impulso galerístico deambulatório. A vontade – ou a desfaçatez – para entrar no espaço esvai-se com o fixar da convenção. Esbate-se a intimidade. A cadeira, a bancada, que até aí parecia pouco natural, torna-se confortável ou, pelo menos, mais plausível. E uma vez sentados, estamos à espera. No fim do segundo andamento, toca um limão. E quê? Nada. O minúsculo mecanismo de cozinha que rege fornos e cozeduras toca porque chegou a sua altura de tocar. É a perfeita metáfora mecânica. O efeito não é causa ou consequência narrativa. É um fim em si. É um limão que toca, quase no fim, em si. Quem quiser sair, que saia. 

No fim da noite jantam-se as sobras. Já ninguém tem força para cozinhar. A radiação cósmica de fundo são resquícios em micro-ondas, migalhas da explosão-mãe. Essa estática, o que permanece quando nada mais resta, é uma manta de retalhos detríticos daquele dia inicial inteiro e limpo. Fica a rede, ficam os elementos em diálogo frenético – e fica o cansaço. Um vazio preenchido por corpos em repouso num sublime silêncio que nunca é - sobra um zumbido, uma engrenagem, a respiração. O big bang gerou tudo, o lítio das baterias e o sangue nas artérias, o tempo do caos e a pausa do turno. O nada infinito é um futuro promissor. Não tenho medo, tenho frio. Quero inventar outras conjugações do ir. Talvez embora, talvez para sempre. Quero ter coragem para sair. Mas não se termina uma coisa que nunca começou. 

Pedro Nunes

Crítica apresentada no Seminário de Escrita Crítica para Artes Performativas, orientado por Rui Catalão, que decorreu nos dois fins-de-semana do ET/FEST, festival onde são apresentados os projetos vencedores das Bolsas de Criação d'O Espaço do Tempo, com o apoio do BPI e da Fundação "la Caixa". Nos dias 24 e 25 de novembro, os participantes tiveram a oportunidade de assistir às estreias absolutas de Cosmic Phase/Stage, de Ana Libório, Bruno José Silva e João Estevens, e Descansar, de Raquel S. / Noitarder.

+ Disponível em https://www.coffeepaste.com/artigos/critica/
+ Disponível na edição n.º 415 do jornal Folha de Montemor

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